segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Intérprete e interpretação. Funções do sujeito

Alojei-me no bangalô, e depois o intérprete me anunciou que o chefe e os anciãos permaneciam lá fora, desejosos de dar-me os presentes de costume. O chefe, com abundantes gestos, mas com compostura, fez-me um longo discurso. Através da tradução que me fez o intérprete, julguei perceber certas frases que não me eram estranhas, e pareceu-me distinguir qualquer coisa como uma bandeira, mãos estendidas através do oceano e o desejo de que levasse a meu próprio país, não só uma saudação daquela terra distante, mas também um urgente pedido dos habitantes para que o governo construísse uma rodovia. Senti que me cabia dar uma resposta, se não tão eloquente, pelo menos igualmente longa. (...) Mas não é nada fácil fazer quarenta arengas diferentes sobre ovos, bananas e arroz. Pensando que o meu intérprete me desprezaria se eu dissesse todos os dias a mesma coisa, comecei a procurar novos meios de expressar minha gratidão pela acolhida e pelos presentes que traziam. À medida que passavam os dias, fui inventando mais de trinta falas diferentes, e era uma satisfação para mim, enquanto estava sentado e o intérprete traduzia o que eu tinha dito, ver os sinais de assentimento que o chefe e os anciãos faziam quando eu acertava no alvo e a maneira como se sacudiam quando achavam graça. E eis que uma manhã me ocorreu de súbito uma piada inteiramente nova. Era muito boa e vi logo como poderia introduzi-la. Chegamos. Na hora devida fiz meu discurso, e, quando chegou minha boa piada, o intérprete fez um gesto e seus olhos brilharam. Eu estava satisfeito. Terminei e sentei-me, enquanto ele traduzia as minhas aladas palavras. O pequeno semi-círculo de ouvintes voltou-se de mim para ele, fitando no intérprete os olhos negros e atentos. O meu intérprete era um bom orador, fluente e com o dom do gesto descritivo. Eu nunca tinha feito um discurso tão espirituoso. Fiquei surpreso de que não parecesse causar efeito. Nenhum sorriso recompensou nenhuma de minhas saídas; escutavam polidamente, mas nenhuma mudança na sua expressão denotava que estivessem interessados ou divertidos. Tinha deixado a melhor piada para o fim, e, como vi que se estava aproximando, inclinei-me para a frente, com um sorriso nos lábios. O intérprete terminou. Nenhum riso, nada. Dei a entender ao chefe que a cerimônia findara, e eles ergueram-se, abandonando um após o outro o bangalô. Hesitei um instante. - Eles não me pareceram nada inteligentes - arrisquei. - É a gente mais estúpida que já vi - disse o intérprete num tom de indignação. - Eu tenho dito a mesma coisa todos os dias, e esta é a primeira vez que não riem. Estremeci. Não estava muito certo de ter ouvido bem. - Como?! - Por que o senhor diz coisas diferentes? O senhor se dá muito trabalho por causa desses ignorantes. Eu sempre dizia a mesma fala e eles gostavam muito. Calei-me um instante. - Quer dizer que para você era o mesmo que se eu tivesse dito a tabuada de multiplicar? - disse depois com certa ironia, o que me pareceu. Meu intérprete sorriu largamente, mostrando os seus grandes dentes brancos. - Sim, senhor, isso lhe pouparia muito trabalho. O senhor dizia a tabuada de multiplicar e depois eu fazia o meu discurso. O pior de tudo é que eu não estava muito certo de que eu me lembrava bem da tabuada. (Somerseth MAUGHAM, Cavalheiro de Salão, Editora Globo, Rio de Janeiro Porto Alegre São Paulo, Tradução de Mário Quintana, 1a. edição, 1959)

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