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Notandum 14 http://www.hottopos.com CEMOrOCFeusp / IJI – Univ. do Porto 2007
Mario Quintana Tradutor
(em homenagem ao poeta, no ano do centenário de seu nascimento)
Gabriel Perissé
Mestre em Literatura Brasileira (USP) e Doutor em Educação (USP)
Professor do Programa de Mestrado em Educação da Uninove (SP).
www.perisse.com.br
Durante muitos anos, Mario Quintana recorreu à tradução como atividade
profissional paralela, uma vez que poeta sempre foi a sua verdadeira e única profissão. Em 1932, aos 26 anos de idade, depois de perder o emprego no jornal O Estado
do Rio Grande, em Porto Alegre, por conta da intervenção do General Flores da Cunha — inicialmente seguidor de Getúlio Vargas —, buscou alternativas e conseguiu
publicar seu primeiro trabalho pela Editora Globo, em 1934: o livro de contos Palavras
e sangue, de Giovanni Papini, no tempo em que o escritor italiano era conhecido e
apreciado. Seguiramse, até 1955, mais de trinta obras traduzidas de autores como Proust, Balzac, Voltaire, Graham Greene e Charles Morgan (sempre pela Globo). Esse número
certamente está bem abaixo da quantidade de textos vertidos para o nosso idioma pelo
poeta gaúcho, conforme nos conta a pesquisadora Beatriz ViégasFaria em artigo dos
Cadernos Ponto & Vírgula (1997). De fato, Quintana traduziu muitos contos policiais
e histórias românticas ao longo de duas décadas, sem que seu nome constasse das
publicações, prática comum na vida editoral daquela época.
Seria uma boa pesquisa literária estabelecer as relações (tênues ou implícitas
que sejam) entre a produção literária de Quintana e as traduções que realizava para
sobreviver.
É possível detectar na poesia de Quintana reflexos, referências, sinais de
seu trabalho como tradutor?
E, em sentido oposto, há, nos livros que traduzia, ainda
que fossem em prosa, algo do seu estilo poético?
A título de contribuição para esta
pesquisa, garimpei alguns exemplos.
O primeiro é um pequeno poema seu:
Telegrama a Lin Yutang
Acabo de ver um negrinho comendo um ovo cozido. Hein, Lin Yutang?
Arrisco uma possível explicação para os dois versos enigmáticos. Quintana
traduziu A importância de viver, do pensador e filólogo Lin Yutang (18961976), que o
escreveu em inglês com uma originalidade e vivacidade que lhe valeram fama
internacional. O livro é de 1937; a tradução brasileira, de 1941. Já o poemeto acima é72
de Sapato florido, publicado em 1948, e alude, creio eu, a uma passagem da obra do
escritor chinês.
Com efeito, este escrevera naquele livro, ao falar sobre a busca da
felicidade humana: “Alguém disse: ‘Melhor um ovo hoje que uma galinha amanhã’.”
Quintana provoca (e de certo modo apóia) Lin Yutang, referindose ao negrinho
brasileiro, sem filosofia oriental, mas entregue à felicidade do momento presente, destituído de qualquer preocupação metafísica com a galinha do futuro... O segundo exemplo extraio de um poema em prosa de Caderno H (1973):
O Mundo de Deus
Aquele astronauta americano que anunciou ter encontrado
Deus na lua é no fim de contas menos simplório do que os
primeiros astronautas russos, os quais declararam, ao voltar, não terem visto Deus no céu.
Porque, se Deus é paz e paz é silêncio, afinal, deve Ele
estar mesmo muito mais na lua do que nas metrópoles terrenas.
E, pelo que me toca, a verdade é que nunca pude esquecer
estas palavras de um personagem de Balzac: “O deserto é Deus
sem os homens”.
A frase encontrase na última linha do conto Une passion dans le désert,
incluído na Comédia Humana. Uma paixão no deserto é a história insólita do encontro
(amoroso?) entre um soldado do exército napoleônico e uma panterna em pleno deserto
egípcio. A tradução de Quintana foi publicada em 1954, sob a orientação de Paulo
Rónai. A frase que define o deserto é do próprio soldado. E que o poeta nunca a tenha
podido esquecer faz pensar como a tradução foi realizada com intensidade e interesse.
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